As revelações de Gilvan Rocha

Confira íntegra da entrevista com Gilvan Rocha

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OP - Gilvan Rocha, como o senhor está vendo as manifestações pelo país desde a Copa das Confederações?
Gilvan Rocha - O capitalismo foi revolucionário, trouxe grandes avanços para a humanidade, não só do ponto de vista material, mas jurídico e político. Deixou um legado imenso, mas chegou ao seu momento de exaustão. É um sistema exaurido. Agora trazendo para a sua pergunta, nós vivemos no Brasil um período nos últimos 20 anos de uma certa paz social. Essa paz social ela não foi alcançada de uma hora para a outra. O governo do Fernando Henrique cumpriu um papel, com o Plano Real, que deu certa estabilidade; o Lula teve a sorte de vir depois, em um período de maiores potencialidades, podemos dizer, que lhe permitiu tomar algumas medidas populares exitosas, a começar pelo programa social Bolsa-Família, que é um programa relativamente de baixo custo para o sistema e que em troca dá uma certa estabilidade social. E ao lado dessa estabilidade oferece ao PT a oportunidade de ter um colégio eleitoral expressivo. Então, houve uma negociação. O pessoal costuma dize r que o PT depois que chegou ao poder, o que não é verdade, há uma confusão generalizada em relação a isso. Porque governo é governo, e poder é poder. Em todos os momentos históricos em que houve conflitos entre governo e poder, os governos foram depostos. O governo não é poder. Governar não é um ato de vontade. Você não faz o que você tem vontade, você faz o que é possível fazer. E esse poder está pré-estabelecido. Existe uma cartilhazinha invisível, na qual você só governa se compactuar com essa cartilha. Então, permanentemente se diz que quando o PT assumiu o governo mudou. Não, ele mudou para chegar ao governo. Teve que buscar um capitão da indústria para ser vice do Lula, o José Alencar, e pagar R$ 10 milhões ao partido dele, um caso raro na história em que o trabalho compra o capital. Houve uma negociação clara com a Carta ao Povo Brasileiro, quando o PT disse, “olha o leão é mansinho, vocês não têm do que ter medo, nós chegarem os ai, prestaremos alguns serviços, tais como: as centrais sindicais, estudantis, os movimentos populares serão congelados. Vocês vão navegar em mares tranquilos”. Mas de repente esse mar de tranquilidade foi conturbado. Surpreendeu a quem? PCdoB, PT, a direita, quer dizer, todos os seguimentos foram pegos de surpresa, e como se explica isso? São demandas reprimidas. E as demandas precisam ter canais de expressão. Ou se expressam através de um partido, um sindicato etc. Quando lhe são tirados esses meios, quando os partidos já não representam, os sindicatos não representam, as demandas vêm à tona como produto de uma coisa não muito elaborada.
OP – Isso explicaria o porque de muitas das manifestações não aceitarem a participação dos partidos políticos e centrais sindicais.
Gilvan - É exatamente isso. O que é que o povo conhece como política? É o cambalacho, a negociata, a demagogia, a mentira, a promessa vã, a maracutaia. Menos a representatividade.
OP – Agora isso também não é um risco? Porque o que se vê são protestos sem uma organização ou com pouca definição do que se reivindica de fato.
Gilvan – É um risco muito grande. Porque o povo não chega a elaborar um projeto. Expressa determinados sentimentos: queremos saúde, educação, segurança. Tudo isso é um sentimento mal elaborado. E isso deixa um vazio, que tanto pode ser ocupado por uma direita, como aconteceu na Alemanha na República se Weimar; como pode ser ocupado por um seguimento de esquerda que respira os velhos vícios.
OP – Me permita então aproveitar essa deixa para voltar ao final da década de 1950, para fazer uma ligação com o começo de sua militância política, em Recife, quando um jovem torcedor do Sport, despertado por uma manifestação sobre carteiras de estudante, acabou fazendo campanha para um grande usineiro em Pernambuco. Qual é a relação que se pode fazer com os jovens que hoje estão nas ruas, mas não sabem direito pelo o que estão lutando?
Gilvan - Na verdade, o partido de esquerda hegemônico, que era o PT da época, era o PCB. E o PCB seguia a linha de Moscou. E Moscou, em estreita ligação com a burguesia industrial, elaborou um programa político chamado reformas de base, que eram um conjunto de reformas cujo objetivo era adequar o país a um novo momento da história naquele instante. Então, duas grandes correntes políticas ideológicas passaram a existir naquele momento. Uma reformista, apoiada pelo PCB, PTB, com alguns segmentos da burguesia industrial, formava o bloco progressista, que queria as reformas; e o bloco conservador, representado pelos latifundiários, exportadores, que não queriam que se mexesse no time que estava ganhando. Como o PCB tinha como política conquistar o seu projeto pela via institucional, essa disputa se transferia para o Congresso. E no Congresso, quem tinha maioria eram os conservadores. Então se criaram as chamadas frentes parlamentares progressistas e essas frentes procuravam arregimentar a população para pressionar os conservadores. Eles financiavam jornaizinhos de esquerda, que a gente distribuía...
OP – E o senhor acabou sendo arregimentado sem ter essa noção dos objetivos?
Gilvan – Eu não tinha clareza. E aconteceram muitas coisas esdrúxulas, como o apoio a um usineiro ao governo do Estado. Então a palavra de ordem era derrotar os coronéis. Era o mudancismo. Estabeleceu-se uma frente política extremamente esdrúxula, porque reuniu PCB, PSB, UDN, apoiando um usineiro para derrotar os coronéis. Uma certa semelhança com o que aconteceu aqui com o apoio a Tasso para derrotar os coronéis. Então nós achávamos uma luta legítima, como se diz hoje, né, que o grande inimigo é a oligarquia Ferreira Gomes, e não lembram que as oligarquias vão e vem e o sistema permanece o mesmo. E nós achávamos que se nos livrássemos da oligarquia do PSD o mundo se abriria para nós, o que não era verdade.
OP – Agora, como o senhor entrou para essa militância, já que sua origem era de uma família conservadora?
Gilvan – Muito conservadora. Na verdade, meu pai era ultraconservador. Era udenista. O udenismo era de ultra-direita, cujos líderes eram Carlos Lacerda, o brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora, o que existia de mais conservador e reacionário. Eu tive contato com o pessoal da esquerda primeiro em uma passeata de estudantes secundaristas. O segundo momento foram as eleições, e como estávamos com a UDN, meu pai não brigava comigo. Era a santa aliança. Nesse processo eu conheci a juventude do partido comunista, que me passava a ideia de que o inimigo era o americano, aquela coisa bem nacionalista, o petróleo é nosso etc. E como era uma literatura muito panfletária, que mexia com a emoção, em um primeiro momento fui ganho por esse lado emotivo. Entrei para o partidão em 58, e em 1960, após a eleição e a renúncia de Jânio (Quadros) e u entrei para as ligas camponesas, que sofria muita influência da revolução cubana, acontecida em 59, e ai começamos a achar que tinha que pegar em arma mesmo.
OP – Em que momento começa a haver o questionamento ao que o PCB defendia e queria que vocês também o fizessem?
Gilvan – A partir da revolução cubana. Puxa, por que Cuba faz a luta armada e nós não fazemos? Ai começou a parte mais jovem do partido querendo a luta armada. Então, quem encarnou essa proposta foram as ligas camponesas através do Julião (Francisco). Ai eu tive que deixar Pernambuco para o norte de Goiás.
OP – Nesse período, com menos de 20 anos de idade, o senhor passa a estruturar uma espécie de guerrilha armada no Interior de Goiás.
Gilvan – A gente lia muito a literatura cubana, e a literatura cubana apresentava a revolução da seguinte forma: Dos 84 que escaparam de um navio - sobraram 12, dentre eles o Guevara com um tiro na coxa, que foram para uma serra. Chegaram lá e montaram uma rádio. Então nós olhávamos para Cuba e víamos que 12 fizeram a revolução. Então nós imaginávamos que bastava uma serra, barba e um pouco de coragem.
OP – Esses eram os pressupostos?
Gilvan – Pois ai fomos procurar uma serra no interior de Goiás. Quer dizer, nem tínhamos serra, e nem barba.
OP – Mas o senhor já tinha pego em uma arma?
Gilvan – Antes de ir para Goiás, não. Mas passei 10 meses lá com a obrigação de dar pelo menos 10 tiros por dia. Nós treinávamos e tal, lá em Goiás, isso em 1962.
OP – Há episódios até certo ponto pitorescos nesse período, como o senhor ter se passado por dentista. Tinha formação para isso?
Gilvan - Nenhuma. Olhe, era uma coisa muito mal formulada. A gente chegou lá em Goiás e montamos um pequeno posto de saúde, contratamos um dentista, e eu era o enfermeiro. Ai fiquei vendo como ele procedia para arrancar os dentes. Ai comprei tudo que era preciso. Andava em um cavalo, com um alforje onde tinha as ferramentas, e em outro alforje tinhas uns cordéis que diziam o seguinte: “meu querido Pernambuco, berço de tantas riquezas, plantaste a flor da esperança, tuas ligas camponesas, no teu solo hospitaleiro, quero contar por inteiro, a dor de todos os camponeses das redondezas. Planto o milho e o feijão, mas quem não planta é quem come, não tens escola nem nada, tua caneta é a enxada, tua mão calejada, não sabe assinar o nome, mas nós precisamos mudar, virar bravo e ser valente, atirar nosso machado, trincar faca no dente e gri tar, viva a pobreza, minha gente...” Então, com esses cordéis, fazia roda de 30, 40 pessoas, e isso deixava a gente eufórico.
OP – E quanto tempo passaram lá?
Gilvan – Um ano.
OP – E nesse tempo acharam que conseguiram o apoio da população? Eles sabiam que era a preparação de uma guerrilha?
Gilvan - Não. Ganhamos a simpatia, o apoio, o elogio. É tanto que quando eu fui preso lá, que eu entrei preso na cidade chamada Dianópolis, com as pessoas esperando o resultado das prisões – só quem foi preso fui eu, o resto conseguiu se evadir -, eu entrei dirigindo um jipe. Isso por que eles estavam com medo de emboscada, por isso me botaram para dirigir. Ai eu entrei dirigindo e dando à mão para as pessoas que estavam na rua porque queria passar para o povo e a repressão que eu não estava amedrontado. Tem até um episódio: é que quando o tenente que me prendeu, tenente Raul, me perguntou: ‘menino, tu brigas’. Eu disse, tenente, só dividindo as armas. E ele achou muito engraçado, ousadia, e até ficou meu amigo, o diabo do tenente. Então quando eu entrei na cidade preso, o pessoal ficou todo dando a mão, e tal. Ai o coronel que comandava a operação não me mandou para o xadrez, me levou para um hotel. Teve medo de ficar antipática a situação. Ai começaram a vir as pessoas me visitar. Foi uma confusão na entrada do hotel. Os militares até disseram para mim, ‘rapaz, tu não deve ser má pessoa, todo mundo vem atrás de ti, até o padre’.
OP – É verdade que até em culto religioso você participou pela guerrilha?
Gilvan – Isso foi antes de Goiás. Quando expulsaram os camponeses da terra (Pernambuco), ai nós colocamos cartazes no peito, que diziam: ‘ajudem os agricultores de Malenga e Pindobal (eram dois engenhos) expulsos pelo fazendeiros e pela Polícia de Cid Sampaio (governador do Estado de 1959-1963)”. E saímos pedindo donativos. E quando estávamos voltando dessa missão, eu e o Serafim, que era agitador de mão cheia, íamos passando em frente a um culto protestante, feito sob uma empanada, cheio de gente. Entramos, e na pregação o pastor disse: ‘quem quer se entregar a Jesus’? O Serafim levantou o braço. Eu não entendi. Ai o pastor chamou o Serafim, que pegou o microfone e falou que estava ali em missão cristã, buscando ajuda para os agricultores. E fez um gesto para mim sair com uma sacolinha passando para pegar dinheiro. Foi o primeiro caso que eu conheço que alguém conseguiu tomar dinheiro dos evangélicos.
OP – Em Dianópolis eram quantas pessoas que pretendiam iniciar a guerrilha?
Gilvan – 25. Agora na hora que a repressão chegou nós preparamos uma fuga e nessa estratégia ficou definido que eu ficaria para segurar os militares enquanto os outros iam embora. Por isso que só eu fui preso.
OP – Como esse grupo se mantinha? Logística, armas.
Gilvan - As armas vinham de vários meios. Uma parte era comprada nesses sertões dos velhos coronéis, rifles, fuzis, metralhadores desviadas do Exército. Na verdade, os detalhes nós não sabíamos todos, porque tudo era dividido, pela questão do sigilo, e dessa parte eu não participei. Mas a gente tinha arma, munição bastante e boa logística.
OP – Qual era o plano que a guerrilha pretendia desenvolver?
Gilvan – O plano era o seguinte: eram seis focos. Tinha o de Dianópolis, um em Minas, enfim. E todos chegaram a ser montados e deveriam ser deflagrados no mesmo momento. Nonosso em Goiás, o plano imediato era prender o delegado de uma cidade próxima, tirar as armas, fazer um discurso, pintar as paredes dizendo que chegou a hora da libertação. Em Dianópolis faríamos o mesmo, prenderíamos o juiz. Era um plano fácil de executar, íamos pegar todos de surpresa. Mas era só para efeito de propaganda. Isso viraria manchete nacional. Porque ao mesmo tempo que tínhamos os focos, tínhamos ligação de proximidade com o movimento de sargentos, marinheiros.
OP – Feito isso, achavam que poderiam contar com o apoio da população?
Gilvan – Em termos locais, sim. Mas nacionalmente, não, porque o governo Jango era um governo liberal, democrático, comprometido com as reformas, quer dizer, era muito fácil ficarmos isolados da opinião pública. Como aconteceu na Colômbia, com as Farc. Quando nós começamos começou também na Colômbia.
OP - O senhor conseguiu fugir do hotel e a partir daí como foi esse período de clandestinidade?
Gilvan – Quando eu fugi, com a ajuda da maçonaria de lá, fui para Brasília, depois Goiânia, Rio, com a ajuda de companheiros. Foi quando estourou em manchete da imprensa, na Cruzeiro, uma longa reportagem de capa, na qual meu nome sobressaia. O presidente Jango então assinou minha prisão preventiva com base na Lei de Segurança Nacional. Mas como não existia estado policialesco, eu deixei o Rio e vim para o Nordeste, Paraíba, Pernambuco. Nos reorganizamos como grupo político até o golpe de 1964. Era uma clandestinidade permitida, em que ninguém achava ninguém.
OP – O grupo de vocês eram uma dissidência do PCB, qual era a visão em relação ao governo João Goulart?
Gilvan – Nós organizamos o grupo Vanguarda Leninista (VL). Fizemos várias ações e depois passamos para o Partido Revolucionário Operário, que era trotskista. Quanto ao governo nós tínhamos uma posição bastante clara. Nós dizíamos que aquele conjunto de reformas era estritamente de interesse da burguesia industrial. Queriam com a reforma agrária abrir um mercado de consumo. Levar as leis trabalhistas para o campo, diminuir a carestia, ou seja, eram medidas que atenderiam de imediato os anseios do sistema. Isso a gente tinha bem claro. Mas éramos minoritários. Os outros diziam: ‘meninos, se enxerguem, vocês não sabem o que estão dizendo. Nós temos história’. Até que um dia nós afirmamos que as coisas estavam se encaminhando para o golpe. ‘Olhe, esse caminho ai vai levar ao golpe’.
OP – Mas quais eram os fóruns que utilizavam para levar adiante essa visão?
Gilvan – Tínhamos muita capacidade de fazermos comício. Havia comício de cinco mil pessoas. Vivia-se uma época em que no Brasil todo se discutia. Havia duas correntes, a dos reformistas e dos conservadores. Você chegava na barbearia o cara tava discutindo, no cafezinho, na escola, na fábrica. Onde você estivesse se discutia, e não era um fenômeno lá do sul não. Aqui, em Fortaleza, foram famosas as manifestações de se arrancar calçamento inteiro com as mãos, jogar paralelepípedo no Corpo de Bombeiros, as greves da Santa Cecília, empresa Têxtil. Havia um quadro que a gente chamava de pré-revolucionário. Agora, quando a gente reunia cinco, oito mil, o outro lado reunia 100 mil.
OP – Nessa perspectiva vocês avaliavam que a perspectiva de um golpe era iminente?
Gilvan – Era iminente, porque aqueles 100 mil estavam ouvindo o seguinte discurso: ‘as reformas vão ser vencedoras, elas vão passar no Congresso’, e negavam qualquer possibilidade de golpe. E a massa trabalhadora acreditava naquelas lideranças. Quando houve o golpe eles refluíram e saíram com uma análise esdrúxula, de que o golpe nasceu em Washington, quer dizer, o culpado foi o inimigo. ‘Nós fizemos tudo direitinho, eles é que não colaboraram’, que é um discurso corrente, aplicado também no Chile: ‘quem depôs Allende foi a CIA’. Ora, mais o jogo é assim mesmo. Se você tiver um plano contando com a colaboração do inimigo trata-se de uma insensatez.
OP – Mas Gilvan, onde estava o contra-senso para os golpistas, se as reformas de base tinham como pressuposto criar uma massa de consumo que favoreceria o mercado?
Gilvan – A sua pergunta é pertinente pelo seguinte. Era um jogo, mas política não é um jogo que se joga só. Quando alguém joga pela reforma há alguém contra; quando se joga pela liberdade, a alguém do outro lado. E todo jogo tem os seus riscos. E aquele era um jogo de alto risco. Chegou um momento que se sucederam as greves selvagens. Era o seguinte. O partido comunista controlava as centrais, que passaram a não mais controlar os sindicatos, os trabalhadores. Algo parecido com o que acontece hoje, greves passando por cima das direções. Então, ao mesmo tempo que aconteciam as greves selvagens aconteciam as ocupações de terra à revelia das direções, e os reformistas começaram a perceber que estavam perdendo o controle das massas. Eles botavam as massas nas ruas, mas elas extrapolavam. É por isso que eu nunca chamei golpe militar. O golpe foi um consenso entre as diversas facções da burguesia e os reformistas, que achavam que já se estava indo longe demais. Vamos fazer aqui o que se chama em ciência política de golpe bonapartista. Ou seja, se chama todas as facções da classe dominante e entra em um consenso temporário para enfrentar o inimigo comum.
OP – Diante da análise de vocês, o caminho também não teria sido o consenso já que se vislumbrava a possibilidade de um golpe?
Gilvan - A questão é que se jogou um trem em movimento e não tinha mais maquinista, tinha que ser parado a qualquer custo. Quando existe uma situação de conflito, é como uma pirâmide e uma bola que sobe. Quando chega no vértice, cai para um lado ou para outro: revolução ou contra-revolução. Como as forças da revolução não existiam, acabou pendendo para o outro lado. Ai o que é que a burguesia faz? Lança mão de seu braço armado, que são pessoas treinadas, nutridas, disciplinadas e prontas a intervir quando o sistema está ameaçado. O sistema chama, ela faz a intervenção, arruma a casa e depois volta para os quartéis.
OP – E depois do 31 de março?
Gilvan – Bom, ai entramos definitivamente na clandestinidade. Não fomos presos, porque nosso grupo teve tempo de escapar. Eu fui preso casualmente em Recife, acidentalmente, e passei 54 dias presos. Não que eu não goste de falar, mas eu não gosto de explorar o martírio. Quando eu notei que eles não sabiam que eu era aquele rapaz de Goiás, fiquei na minha, e eles me soltaram, e eu vim para o Ceará. Eu fui solto na promessa de retornar lá, mas acabei me evadindo e fui o primeiro, em novembro de 1964, a ter uma foto exposta em jornal como foragido.
OP – Em que circunstância foi sua vinda para o Ceará?
Gilvan - Quando me soltaram a VL cuidou para que eu saísse. E existia uma ponte muito tênue com um pessoal daqui, de Fortaleza. Aí, primeiro me mandaram para uma fazenda em Solonópole, onde passei três meses.
OP – Lá em Solonópole você teve uma filha, não é isso?
Gilvan – Tive um namoro e desse namoro tive uma filha. Antes dela nascer eu tive contato com a minha família e a mandei para a casa da minha família em Pernambuco. Depois dessa temporada eu vim para cá, onde tive contato com Ester Barroso, Valton Miranda, entre outros, e começamos um trabalho que chamamos escola de quadros. Eu passei nove anos na clandestinidade morando em Fortaleza, até 1974. Depois disso eu me evadi em um primeiro momento para o Maranhão, onde tive oportunidade de fazer grandes amizades inclusive com o ex-governador Jaques Lago, que me ajudou na fuga. Depois fui para São Paulo, Argentina, já com outra identidade, Samuel de Freitas Pinto. E de lá viajo para Portugal, por ocasião da Revolução dos Cravos.
OP – Como foi sua experiência na Revolução dos Cravos. É verdade que se encantou em um primeiro momento e em seguida se decepcionou?
Gilvan – Não houve uma coisa nem outra. O meu encanto sempre foi cauteloso. Há um dado concreto na vida das pessoas. O que hoje causa emoção em um jovem - tem gente que acha que a revolução aconteceu com o “Ocupe o Cocó” -, mas uma pessoa que viu 300 mil pessoas na rua, levou tiro, deu tiro, tenho outra escala de emoções. Então, quando eu vi a Revolução dos Cravos, eu vi com muito temor. Porque quem tinha a liderança das massas era o Partido Comunista Português e o Partido Socialista Português, Mário Soarez e o Álvaro Cunhal. Cunhal pertencia ao PCP (Comunista Português) e obedecia a orientação de Moscou, que era não avançar a revolução socialista, porque se não iria desestabilizar toda uma história estabelecida. E essas duas organizações de massa tinham esse discurso institucional: convocar uma assembleia nacional c onstituinte e tal. Havia um seguimento, veja a ironia da história, que tinha muito peso, que tinha como liderança o Otelo Saraiva, ocuparam vários quartéis, mas eles não tinham a audácia de atravessar o rubicão. Atravessar o rubicão é uma lenda referente ao imperador Júlio César que vai rumo à Roma, e quando a chega à beira do rubicão (rio), tinha que tomar uma decisão. Se atravessasse teria que ocupar Roma. Por isso é atribuída a ele a expressão “a sorte está lançada”. Em Portugal os militares foram até longe, mas como agiam mais pela intuição, sem uma formulação política, eles claudicavam. Molhavam o pé no rubicão mas não atravessavam. Então, quando eu vi os militares muito ligados ao Otelo, eu sai de Portugal e voltei clandestinamente ao Brasil.
OP – Nesse situação de clandestino o senhor chegou a trabalhar na Coca-Cola?
Gilvan – Sim, e fui até agraciado com a placa de melhor vendedor do ano.
OP – Não havia contradição nisso? Aliás, hoje você é empresário.
Gilvan – Não. Eu tinha que encarar a vida. Milhões de pessoas trabalham para sobreviver. São contingências. Tem coisas que são mais fáceis, outras exigem mais sacrifício. Mas no geral o sistema lhe leva a assumir determinadas posições. Eu não enfrento drama de consciência algum. Muitas vezes era acusado de ser empresário, que de fato sou, mais ainda hoje, e eu respondia que o que importa não é como eu ganho, mas como eu gasto. Eu nunca fui um empresário para usufruir as benesses do sistema.
OP - Há um episódio na sua história, exatamente no dia 31 de março de 1964, que marcou sua relação com Miguel Arraes. Como foi isso?
Gilvan – No dia 31 de março, na parte da manhã, eu fui procurado em Recife por um líder da Associação dos Marinheiros, era secretário-geral, o Geraldinho, mais conhecido como Neguinho. Ele era liderança de massa. O Neguinho chega a mim e diz assim: ‘Gilvan, nós estamos aqui com um navio de guerra no porto. A maioria da marajuda é nossa. A gente queria muito bem empreender uma ação. A gente zarparia, e como não poderia ficar em alto mar, zarparia, dava uns tiros no quartel de cinco pontas, que é o do Exército, mas a gente teria que desembarcar em Sirinhaém". É como se fosse a distância do Pecém para Fortaleza, porque lá nós tinha um líder de massa, chamado Júlio Santana. 'Então, eu gostaria que a gente fosse em comissão falar com Arraes, para soltar Júlio Santana, porque ele iria para Sirinhaém levantar a massa, ancorávamos lá e começaríamos um pipoco'. Isso para iniciar um resistência prévia contra o golpe. Essa era a ideia. Tiramos uma comissão para falar com Arraes, cinco pessoas. Na audiência dissemos que o golpe estava em gestação e contamos o plano. O Arraes disse: ‘meninos, vocês estão enganados. Acabo de receber a ligação do comandante da Base Aérea, do 4º Exército, garantindo que não há perigo de quebrar a legalidade’. Ai ele despachou os meninos.
OP – Gilvan, eu não queria deixar passar também, já que estamos falando de liga camponeses, de você falar um pouco sobre o líder das Ligas Camponesas Francisco Julião, sobre quem você faz várias restrições a atuação política.
Gilvan – Todas, todas. O Francisco Julião, ninguém o definiu melhor do que ele mesmo. Ele disse: ‘eu não sou um dirigente revolucionário, eu sou um agitador social’. Foi perfeita essa definição. Como é que surgiu Julião? Ele tinha sido eleito deputado estadual pelo PSB. Existia no interior de Pernambuco, em uma cidade chamava Vitória de Santo Antão, uma associação de lavradores que fazia cotas para financiar um enterro, caso de doença de um ou de outro, e aqui acolá apareciam casos trabalhistas. Um dia essa delegação se dirigia ao delegado da cidade, e ele disse: ‘procurem um advogado, essas causas não são caso de polícia’. Ai o Zezé da Galileia, que era o presidente da Associação, vai até Recife, e lá, em conversa com uma pessoa, com outra, lhe disseram que havia um deputado de primeiro mandato, jovem, advogado, chamado Francisco Julião, que topava essa empreitada. Ai ele vai ao Julião, que topa pegar as causas. Ele começou a encaminhar e ssas pendências legais, começou a dar certo e resultado: os engenhos vizinhos começaram a procurar o Julião. E ele passou a dizer que os agricultores só voltassem quando organizassem uma associação: ‘eu não atendo ninguém que não seja organizado’. Mas essa era uma visão eleitoral, porque ele tinha com isso sua reeleição mantida. Esse fenômeno a imprensa começou a repercutir. Quem botou o nome de ligas camponesas foi a imprensa. “Estão surgindo no interior as ligas camponesas, proposta comunista etc.’. E na medida que o rádio falava isso se propagava. Somada a influência da revolução cubana, que dizia que os camponeses iam derrubar a ditadura tomando a terra, foi fogo na pólvora. O Julião emerge como um quadro de massa, mas acontece que aquele momento histórico que nós nos reportamos antes de 1964 ele não necessitava de apenas um ou outro líder, necessitava de uma movimentação revolucionária. Quem mais se aproximou disso foi o Brizola. O J ulião se negou a isso, Arraes mais ainda. De todas aquelas lideranças ninguém se assumiu revolucionário.
OP – Queria falar sobre sua volta ao Ceará e o PT. Quando se deu esse retorno?
Gilvan – Eu retorno com a anistia e parto para a organização do PT.
OP – Já na presidência do PT vem a eleição da Maria Luiza. Queria ouvi-lo sobre como foi aquela experiência.
Gilvan – O grupo da Maria Luíza procurava uma legenda para ela ser candidata à prefeitura. Foram ao PDT, que não aceitou. O grupo dela imaginou que poderia ser o PT. Mas como eles não mantinham boas relações com a direção estadual por disputa de espaço, procuraram a direção nacional. A reação da direção foi rejeitar, porque era uma atitude oportunista etc.
OP – Quem eram os dirigentes do PT no Ceará?
Gilvan – William Montenegro, Manoel Fonseca, Vital. Não havia nenhum desses nomes que você vê hoje, Mário Mamede, Guimarães, Cartaxo. Eles só vieram para o PT depois da vitória da Maria Luiza. Antes da vitória diziam que o PT era um partido inviável. O padre Haroldo também não era. Eu comuniquei a posição sobre a Maria Luíza à direção local. A reação foi terrível, mas as bases se encantaram com a ideia pela perspectiva da vitória. Com ela teríamos a oportunidade de conquistarmos a prefeitura, achavam as bases. Então havia essa contradição. A direção era resistente, mas as bases populares viam com muita simpatia.
OP – Mas já se vislumbrava essa perspectiva de vitória?
Gilvan – Para dar uma resposta mais precisa, havia possibilidade. Remota, mas havia. Com um candidato nosso não haveria nenhuma. E foi um tempo de muito conflito. Entra, não entra no partido. Até que a direção fez a seguinte proposta: você vai ser candidata à prefeita, mas Gilvan Rocha, o candidato à vice. O partido é quem indica". E assim ficou. Um dia vem a Maria com um grupo, dizendo: ‘Gilvan, nós estamos com dificuldade com seu nome. Você é um nome completamente desconhecido, e a gente queria que em seu lugar fosse o Américo Barreira”. Eu disse, ‘olhe Maria, eu só aceitei ser o vice, porque o Américo disse periptoriamente que não seria candidato. Mas se ele aceitar eu abro mão’. Eles fizeram uma reunião com o Américo, e aqui eu quero registrar que o Américo foi um dos homens mais dignos do Ceará que eu já conheci, disse: ‘olhe, eu afirmei que não seria candidato. E meu propósito é não ser candidato. Mas como a coisa está tomando volume, eu também não quero ser tropeço. Mas só aceito com uma condição. Não é ser candidato do PT não, é ser candidato do Gilvan Rocha”. O que é que eu poderia dizer, né? Ele não fez aquilo por malandragem. Ele fez de coração. E fizemos outra convenção, porque os dois nomes já tinham sido homologados. E fiz um discurso dizendo que não estava renunciando, porque minha trajetória não era de renúncia, mas elevando o grau de competitividade da chapa. Foi aquela festa, numa convenção enorme.
OP – O partido iniciou unido a campanha?
Gilvan - Tinha um seguimento que se retraiu. Mas com o andar da carruagem...teve gente que disse assim: ‘prefiro cortar meu braço a votar na Maria Luíza’. Mas depois foram se chegando e na reta final havia unanimidade.
OP – Durante a campanha, já que houve problema para aceitar o grupo da Maria Luíza, houve tensão interna?
Gilvan – Não, até porque a campanha era feita por três pessoas, no máximo quatro. Ela, eu, Rosa e eventualmente o Américo, porque ele tinha problema de locomoção. Os comícios você imagina, eram em cima de uma carroça, serviço de som precário.
OP – Quando é que sentiram que ela poderia vencer a eleição?
Gilvan – Aconteceram momentos que nos pareceu mais evidente. Como tiveram momentos que brochou. Mas eram momentos. A Maria era uma pessoa muito agradável, nunca disse não a ninguém, prometia resolver todos os problemas, da inflação ao emprego. Eu até dizia para ela, Maria não tem condições, não diz essas leviandades. Ela só dizia: ‘é mesmo, né Gilvan”. Mas continuava dizendo. O resultado é que quando foi cinco horas, no dia da eleição, quando fecharam as urnas, eu liguei para ela. ‘Maria, vamos agora a todas as estações de rádio anunciar a nossa vitória’. Ela: ‘Gilvan, não é precipitado’? Era para evitar a fraude. Porque só a fraude podia tirar a eleição. Liguei para o Américo e disse, ‘nós ganhamos’. Peguei ela, vim aqui na rádio O POVO, foi a primeira que viemos. E eu disse: “Maria, pode falar com segurança que nós ganhamos a eleição”. Ai começaram a abrir as urnas. O Paes na frente. E eu era entrevistado a cada meia ho ra e dizia que até a meia-noite nós íamos virar. As pessoas não percebiam que as primeiras urnas apuradas eram as mais antigas, a população mais madura, e quando ia chegando nos votos mais para o fim, que eram os mais jovens, a diferença ia diminuindo. Eu percebi logo isso. Quando deu meia-noite, exatamente, começou a virada.
OP – Agora Gilvan, durante a campanha, se chegou a discutir o que se pretendia fazer caso a Maria Luíza vencesse?
Gilvan – Chegamos, chegamos. Eu tinha uma proposta. Não era para depois que ela ganhasse. Era para que fôssemos criando a ideia dos conselhos populares, com representações de bairro, porque nenhum governo era suficientemente forte, aquela discurseira. Eles concordaram mas nunca se propuseram a viabilizar.
OP – E no dia seguinte a vitória?
Gilvan – Então começaram a haver as reuniões para a formação do secretariado. Eram cinco pessoas que escolhiam o secretariado: Maria Luíza, Jorge Paiva, Américo Barreira, Guimarães e eu. Não houve conflito. Até para ser honesto, quero dizer que a maioria dos secretários foram apontados por mim. Agora, montado o secretariado, tivemos muita dificuldade.
OP – Havia disputas internas?
Gilvan – Também, mas porque todas as prefeituras de capital estavam sem dinheiro. O Calazans (Camilo, presidente do BNB) foi recomendado pelo presidente Sarney à época para atender tudo que a Maria Luiza precisasse.
OP – Por que essa atitude?
Gilvan – Porque ele é político. E um político competente. Ele sabia que Maria Luíza não ia derrubar o capitalismo. Esse pessoal todo sabia disso. Só esses esquerdóides mal informados é que achavam que tinha começado a revolução no mundo. Primeiro, porque quem arranjou a entrevista com o Sarney fui eu. Liguei para uma pessoa amiga minha de convívio com Sarney e pedi ajuda nesse contato. Em quinze minutos recebi o retorno marcando o dia. No dia marcado ele mandou um bilhete para o Calazans: ‘O que essa moça precisar pode ajudar’. O que é que o Calazans fazia? Todo fim de mês era deficitário. Ele pagava o déficit e empenhava o próximo mês. Essa situação de penúria era comum a todas as prefeituras. E só veio a ser sanada com a promulgação da constituição de 1988.
Gilvan – Além desse quadro, o que levou também a outras dificuldades da gestão?
OP – Vários fatores. Um, a escassez de recursos. Dois, o tipo de campanha, onde se prometia resolver todos os problemas e não havia essa possibilidade. Nós fomos vítimas das nossas próprias promessas. Terceiro: uma carência de quadros. Por sinal, os da universidade, foram os mais incompetentes. Eu não cito os nomes por uma questão de elegância, fica para a história, basta pesquisar. E a má condução política. Eu, por exemplo, cometi o maior erro que se poderia cometer, já no dia seguinte ao resultado da eleição. Eu dei uma entrevista aqui nos Debates do O POVO, sobre como seria nossa relação com os vereadores. Eu disse que a Câmara de Fortaleza era uma das casas legislativas mais prostituídas que tinha no Brasil. No outro dia foi manchete no Jornal do Brasil. Começamos o governo quebrando a louça. Eu estou citando um caso. A nossa ingenuidade era tão grande, que existia um bocado de radialista que recebia uma portaria, duas e tal, e o primeiro ato da secretaria de Comunicação foi tornar nulas todas aquelas portarias. De uma hora para outra grande parte da imprensa virou inimiga do rei. Começamos sem a imprensa e sem os vereadores. Não tinha como. Ou seja, faltou maturidade, juízo. Você vê que os outros governos de esquerda foram completamente diferentes. Luizianne Lins viveu em lua de mel com a Câmara oito anos. Isso não aconteceu de graça. Era o toma lá, dá cá....O Lula, em nome da governabilidade, veja com quem ele se irmanou. É interessante isso, porque a esquerda e a direita tem formas diferentes de lidar nessas situações. A direita, quando dois grupos brigam, eles marcam um encontro e começam conversando pelas convergências: ‘Mas hoje tá fazendo calor, né? O outro diz, rapaz, você já observou o trânsito, como está cada vez pior?’. Gasta meia hora de papo nas convergências para depois tratar das divergências. Mas não para confrontar, mas para negociar. Já os dois de esquerda, quando se sentam, dizem assim: ‘eu vim aqui mas eu vou logo dizendo que não abro mão disso, disso, daquilo outro’.
OP - Há um episódio marcante ainda em relação a esse período que foram os recursos que o PT recebeu para a campanha do padre Haroldo Coelho ao governo do Estado. Queria que falasse sobre isso, já que esse fato marcou o seu rompimento com o grupo da Maria Luíza.
Gilvan – Primeiro, é uma ilusão pensar que a Maria Luíza ganhou a eleição a prefeitura em 1985 só vendendo brochinhos. Um empresário mandava um pacote de dinheiro, outro mandava outro, mas não era nada demais, era uma doação para pagar cartaz. Agora se fazia às escondidas para não comprometer politicamente. E a gente não tinha como fazer os filmes. Um dia o Virgílio Távora telefonou para o Miguel Dias (TV Cidade) e pediu para fazer nossas filmagens, e a única coisa que ele pediu foi para ser depois de meia-noite, quando estavam desocupados os estúdios. E o pessoal da Manchete fazia a edição. Os programas ficavam ótimos, mas não eram por conta de brochinhos, não. Depois que a Maria Luíza ganhou, o Virgílio Távora, numa roda, na qual estava o meu cunhado Raimundo Padilha, que era presidente da Bolsa de Valores, disse: ‘olhe, Raimundo, essa moça me deu a maior alegria política’. Ele estava feliz porque tinha uma conta a ajustar com Gonzaga Mota, que apoiou o Paes, inimigo do Virgílio. Essas coisas não vieram a público, nem eram para vir. Quando foi em 86, na campanha do padre Haroldo, a tragédia se repetiu. Ou seja, nós fomos para o ar, ao vivo, porque não tínhamos dinheiro para fazer os programas de campanha. Ai a coisa se inverteu. Os coronéis viram que a gente não tinha dinheiro e mandaram um portador falar com a Maria Luíza, perguntando quanto eram as gravações, que eles pagariam sem pedir nenhum retorno. Antes disso, eu tinha recebido um recado do senhor Tasso Jereissati (candidato ao governo), trazido pelo padre Haroldo, dizendo que ele queria conversar comigo. Eu fui. Na frente do Amarílio Macedo, do então reitor da Uece, Cláudio Régis, ele disse: ‘eu estou disposto a ajudá-los, quero apenas que vocês não nos critiquem e tal..’. Ele também insinuou que pagaria minha campanha a deputado. Tentei ser gentil, disse que iria conversar com o coletivo. Fui para a executiva, mas disse que era contra, por ele estava propondo uma negociação, mas impondo. Três, quatro dias depois, estavam Paulo Linhares, Fernando Costa, eu e Maria Luíza. A Maria estava eufórica, dizendo que trazia uma ótima notícia. Os coronéis, através do Valter Cals, mandaram dizer que pagariam a edição do nosso programa sem pedir nada em troca. Foi unanimidade. A Maria só pediu que eu e ela não aparecêssemos nessa história. E assim foi feito. Nazareno Albuquerque era o dono da produtora, ele pode confirmar essa história. Eu sei que o valor total era menos do que um fusca usado à época. A verdade é que o programa foi ao ar. Logo após a campanha houve uma disputa pela direção e eu ganhei fácil da Maria Luíza. O grupo dela, que tinha ainda Rosa, Auto Filho, Ilário Marques, urdiram uma campanha contra mim, e a Rosa chegou a dizer que eu nunca mais ergueria a cabeça. Então houve toda uma tentativa deles de tentar me desqualificar para assumir a hegemonia do PT.
OP – Gilvan, para encerrar, eu queria que fosse bem objetivo. O socialismo ainda é possível?
Gilvan – Eu colocaria a situação de uma outra forma. O socialismo não é o ideal, não é um desejo, não é uma utopia. É uma necessidade histórica. Mas ele só se imporá se tiver força para se impor. Caso ele não se imponha será uma tragédia total. O capitalismo está se mostrando de forma cada vez mais predatória, é um sistema que se inviabilizou. Mas o socialismo só virá se tiver força para vir. Agora já não tenho mais aquela certeza pia de que o socialismo é tão certo como o nascer do sol.
OP – Dentro dessas certezas, é possível dizer que o socialismo jamais será uma obra da esquerda?
Gilvan – Essa esquerda que está aí? Eu escrevi um artigo intitulado ‘limites’, onde eu dizia que essa esquerda que está aí não ultrapassará jamais a marcha da maconha, a marcha das vadias e a parada gay. Não vai além disso. Essa esquerda não assusta burguesia nenhuma não.
OP – Falta ainda uma autocrítica da esquerda sobre o que aconteceu em 1964?
Gilvan – Eu não conheço, de 1964, uma obra de esquerda que mereça respeito. Ou é bajulatória, ou é triunfalista, ou culpa o inimigo pela derrota. Tem tudo, menos a verdade. Explora o martírio, a bravura, mas não se resolve o problema pelo martírio ou apenas pela bravura.
OP – É correto colocar a culpa do golpe apenas nos militares?
Gilvan – Pelo contrário. Você viu algum militar ficar rico nos 20 anos de ditadura? Sabe quem ficou rico nesse período? Quem ficou rico foi Odebrecht, Camargo Correia, Gerdau, Pão-de-Açucar. A burguesia fez o golpe para ela e não pagou nenhum real. E essa conta caiu toda nas costas dos milicos. Aquele que construiu a ponte Rio-Niterói, (Mário Andreazza), quando morreu, tiveram que fazer uma cota para pagar o enterro dele. Todos aqueles coronéis e generais, nenhum ficou rico.
OP – Essa conta cabe um pouco também à esquerda?
Gilvan – Total. A esquerda que nós tínhamos dizia que não haveria o golpe porque nós tínhamos o dispositivo militar capaz de sufocar qualquer tentativa de golpe. Ela desarmou o povo sobre qualquer possibilidade de golpe. Ela formulou e praticou uma política que conduziria a derrota. Era um suicídio. E não aconteceu só aqui, não. Aconteceu no Chile, na Indonésia, onde 500 mil pessoas foram mortas. Mas ninguém conta esse história, porque para contar tinham que aparecer os responsáveis.

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