A Senhora do Tempo

"O relógio de parede recusa-se a funcionar. Foi minha culpa. Faltou-lhe parede, amassou-se em embrulhos apressados do dia antes de ontem e, mesmo depois de chegar à nova casa, nem parede de verdade lhe dei. Ele perdeu primeiro o movimento dos segundos, depois os minutos e as horas, talvez também por causa da umidade destes dias chuvosos, ou por não aceitar a escada de madeira. Dele só me resta a estampa, que move outros mecanismos invisíveis...


Dois dias depois de chegar, perdida entre caixas de papelão e jornais amassados, no meio do cenário da passagem de um furacão, eu tentava entender, afinal, o porquê da necessidade irreversível de morar nesta vila com ruas de terra – a mãe terra, de onde viemos e para onde vamos voltar -. Antes de hoje nada poderia, de forma alguma, fazer sentido, a transformação radical em pleno curso me dizia que todas as certezas precisariam ser remodeladas após a conclusão da mudança.

E, no day after, não tenho uma certeza a qual me agarrar. Talvez o motivo tenha sido a necessidade de finalmente parar a roda viva fabricante de zumbis do mundo exterior – o relógio? -, na qual eu me sentia sem conseguir dar conta de minha vida. As contas a pagar saltitavam nos dias da semana e não chegavam pelo correio para que eu as reconhecesse a tempo. Os diferentes planos de diferentes operadoras de celular me exigiam conhecer detalhes específicos para não ser assaltada por um mero telefonema. O carro se transformara em um devorador insaciável de líquidos sobre os quais eu nunca havia ouvido falar e gerava multas automaticamente. No trabalho, por mais que me esforçasse, tinha a sensação de estar sempre devendo algo. Pressionada por todos os lados, adotava como partes do eu “aquela dorzinha do lado esquerdo” e alguns problemas de saúde crônicos. Eu quase esquecia de dar ração aos gatos (uma tarefa nem tão complicada, mas muito importante).

Minha vida se tornara um fosso de areia movediça, e eu nem podia pedir ajuda. Os amigos pareciam estar afundando em seus próprios fossos. Às vezes, conseguíamos espichar a mão para fora do lodo e dar um ao outro um aceno virtual, mas só. Até mesmo sair para um cinema era uma operação perigosa e dispendiosa. Os assaltos tornaram-se cada dia mais comuns e, ao valor dos ingressos, precisava ser somado o do estacionamento do shopping, algum “necessário” lanche ou compra e, em dias de buscar mais distanciamento dos problemas cotidianos, uma pipoca a preço de ouro. Com as saídas para “diversão” tomando estes moldes, dá para entender porque, nas cidades, ninguém mais tem tempo de encontrar o outro, o que é considerado normal...

As premissas que me guiaram, assim, foram: a urgência de simplificar a vida, a busca por uma proximidade maior de um estado geral de saúde, a vontade de voltar a morar (sentindo-me razoavelmente segura) em uma casinha tranquila - onde eu pudesse ajeitar com calma cada detalhe, em puro deleite de ócio criativo-, a necessidade de me sentir mais próxima da natureza e a esperança de ter amigos que eu pudesse encontrar facilmente pelas ruas. Guardar dinheiro para coisas como... conhecer a Europa? Talvez nunca. Tudo bem, valia o risco.

Ou, resumindo em poucas palavras o que me motivou: queria ter novamente controle – até onde isso é possível - sobre minha vida e CUIDAR-me. Cuidar: verbo que se tornou importante em minha compreensão de mundo desde que conheci o livro Saber Cuidar, de Leonardo Boff. Àqueles que já leram meus textos, peço desculpas se me tornar repetitiva, mas explico aqui o que o autor fala sobre o paradigma do cuidar (um paradigma feminino), deixado de lado pela humanidade, que precisa com urgência ser retomado, para o bem de nossa espécie, de todas as outras - infelizmente sob o nosso jugo -, e do planeta que habitamos.

Hoje, tantas mudanças estão em andamento que precisamos descobrir onde nos situamos: terá o mundo se tornado de fato mais violento? Ou as redes sociais nos permitem saber mais e mais da violência que já acontecia e – em um possível aspecto positivo – nos dão a possibilidade de manifestar nossa reprovação para as suas mais diversas formas? Confesso que ainda não decidi por nenhuma resposta. A multiplicidade de ações revoltosas e violentas nas ruas, em manifestações confusas, em uma desideologização que dissolve qualquer tentativa de contextualizar e conscientizar, também me fizeram querer mudar para longe do centro urbano, onde eu conseguiria, pensei, tempo e calma para analisar os fatos.

No meio da bagunça da nova casa, reafirmei minha decisão: sim, com certeza vim para cá a fim de me cuidar, de cuidar do meu canto, dos meus bichos, das minhas plantas antes de enlouquecer, adoecer ou... ter meu tempo sobre a terra sumariamente encerrado pelo roteirista lá de cima.

Lembro logo da frase de uma amiga, em desabafo: “estou cansada de cuidar, queria ser cuidada”. Por que nós mulheres parecemos estar sempre repetindo, ou calando, isso? Bem, tenho algumas teorias a respeito.

Se Boff falou do quanto a humanidade perseguiu o paradigma masculino de conquistar e deixou de lado o cuidar, é preciso pensar quais mudanças esta corrida pela conquista de não sabemos o quê trouxe para a sociedade. As mulheres, desde sempre Amélias, “mulheres de Atenas”, Penélopes e princesas que esperavam pelo homem, pelos guerreiros, pelos Ulisses, cansaram de esperar. Agora elas vão à vida, à guerra, ao mundo. Agora elas crescem não apatizadas em princesas, mas já iniciadas na arte de profissionalizar-se em sucesso e colecionar conquistas. Do flertar ao namorar, ao ficar e ao pegar, os relacionamentos deixaram de ser relacionamentos – a palavra corre o risco de ficar fora dos novos dicionários, até -. Agora há, dos dois lados, conquistadores que não se deixam conquistar – pois isto seria perder a guerra.

Nós, mulheres, temos aprendido, em nome de uma suposta igualdade que só fez impor um modelo masculino, a sufocar uma parte natural de nossa índole de amar integralmente, de cuidar; a árvore generosa que dá sombra, flores e frutos; a mãe que amamenta, consola e acolhe. O instinto materno e a maternidade não são mais plenos, são resquícios permitidos nos intervalos entre o trabalho, o estudo e outras exigências do consumo social.

Minha mãe, apesar dos 81 anos, de um casamento de mais de sessenta e de ter criado três filhos, já adultos, espantosamente não sabe cuidar-se. Foi uma das mulheres que viveu com plenitude a condição de ser mãe e dona de casa. Mas, nesta época não tão distante, não foi escolha, obrigação. Pairava sobre as possíveis fagulhas de felicidade a sensação de estar em uma jaula, a tutela repressora do machismo - que a impedia de sentir a beleza da vida, trazendo como ônus um marido naturalmente infiel (a infidelidade era parte da natureza masculina, agora também é da feminina - !? -), e incontáveis restrições de desfrute em um mundo feito de censuras e resignações. O tempo, como é de seu mau costume, passou inexoravelmente. Tudo ao redor mudou, meu pai faleceu... Entristecida, constatei: minha mãe precisa, agora, cuidar de si mesma, e não sabe como fazer. Ao menos se permite algumas pequenas alegrias, desfrutadas como travessuras infantis, com as quais eu e minha irmã, as mulheres da família, compactuamos. (a pergunta que me faço agora, para a qual ainda não tenho resposta, é: e eu, saberei cuidar de mim mesma?)

Parece que nossa sociedade, masculinizada em seus paradigmas, distorceu de tal forma o papel da mulher que nós, fêmeas, nos tempos pós-modernos, fazemos parte ‘de um feminino subnutrido, doente, abandonado, transmutado em aparente independência, mas explorado até o fim para agradar aos olhos, ao paladar, para dar gozo ao conquistador. Um feminino quase sem capacidade de gerar a vida...

O amar foi dilacerado, de geração em geração, até chegar ao “pegar”. Se eu “pego”, vivo sob a ditadura do corpo, não acompanho o amadurecimento do grão, não vou ter colheita na próxima estação, não vou aprender a enfrentar as pragas, não irei “perder tempo” e não vou lembrar que ainda tenho um coração – não sofro, portanto... -.

Somos uma sociedade de fast food, de consumo e prazeres instantâneos, em que “não ter tempo” é, ao contrário do que se pensa, não algo alheio a nossa vontade, necessidade ditada pela sobrevivência física, mas condição indispensável para não enfrentar o quanto nossa vida ficou vazia, tal qual uma semente transgênica que nunca brotou. As crianças que chegam vão logo aprendendo a viver no vazio, substituem os machucados no joelho e a aventura de brincar pelas ruas por novas máquinas digitais que atrofiam os olhos e o coração, e impedem de contemplar o mundo ao redor. O que terão para lembrar em experiências de vida quando seus joelhos já não permitirem caminhar sem dor?

Parece que só faço acumular perguntas. Com os textos, vou tentando, ao menos, organizá-las em novos espaços, como tudo que vou tirando das caixas. Talvez acumular perguntas seja o melhor a fazer, já que as certezas têm vindo, quase sempre, preenchidas de valores antigos ou novos e distorcidos.

Aos leitores, sugiro acumular suas próprias perguntas para usá-las como tijolos em uma nova construção – coletiva, quem sabe? -.

É bom prestar atenção no relógio: tic tac, tic tac, tic tac. Logo são horas de dormir, talvez para sempre.

Valéria Regina

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